Fábio Carille encara o forte calor árabe durante treinamento do Al-Wehda em Jeddah. Foto: Divulgação

Fábio Carille encara o forte calor árabe durante treinamento do Al-Wehda em Jeddah. Foto: Divulgação

Fábio Carille está feliz na Arábia Saudita. Quase três meses após desembarcar no país para comandar o Al-Wehda, o ex-comandante do Corinthians garante estar se acostumando bem à peculiar cultura local. A voz calma e serena dá o tom na conversa de mais de uma hora com a reportagem. Família, time, trabalho, campanha, relacionamento com os dirigentes locais... Nada parece incomodar o treinador. O roteiro tranquilo só é alterado na hora de comentar a saída do Brasil.

Carille se mexe na cadeira de sua sala. De maneira mais incisiva, em tom de desabafo, comenta o momento em que resolveu deixar o então campeão brasileiro e paulista para topar o desafio em um centro pouco badalado do futebol mundial.

"Primeiro é preciso explicar uma coisa. Eu precisava. Eu estava em um ponto que eu tinha que sair, não dava mais", frisou, rechaçando explicar os motivos da declaração.

"São coisas que eu nunca vou dividir com ninguém, coisas que estavam acontecendo no Corinthians. Não estava dando para mim. Coisa muito pessoal. Já estava para sair a qualquer momento".

 

Pedro Ivo Almeida/UOL
Carille faz anotações em sua sala no CT que serve de base para o Al-Wehda, em Jeddah

 

Inicialmente, muitos pensaram que a proposta salarial dos árabes havia sido fundamental, fato negado pelo treinador.

"Não digo do lado financeiro. Claro que ganho mais aqui na Arábia. Mas se fosse aspecto de grana, eu teria ido para a China em janeiro [de 2018]. A proposta era muito maior. Um absurdo de dinheiro. Era coisa para ficar dois anos lá e nunca mais trabalhar na minha vida", ressaltou.

Mas Carille preferiu o desafio árabe. "Liguei para gente como Renê Simões, Paulo Autuori, gente com vivência no futebol daqui. Eles me deram boas recomendações. Pesquisei certinho, não poderia sair para uma furada também. Por fim, meus advogados ainda explicaram que o contrato tinha uma chancela da Fifa, que resolveria qualquer possível problema de falta de pagamento".

Técnico vê má fase normal no Corinthians

O desabafo com a situação envolvendo o Corinthians, no entanto, está longe de representar uma mágoa. Mesmo longe, ele acompanha o time. E dá sua opinião sobre a má fase.

"É algo natural, difícil de evitar. Clubes brasileiros acabam passando por isso. É um ano de conquista e outro de vendas e retomada. Todos precisam fazer caixa. Então você perde elenco e força. Passamos por isso depois do Mundial [2012 para 2013], o Tite passou por isso posteriormente. Você perde Balbuena, Arana, Rodriguinho. É difícil fazer a turma que chegou já render. O Corinthians é um clube específico. O jogador precisa chegar, entender, passar uns jogos no banco talvez. Foi assim com o Ralf, com o Paulinho. Precisa ter calma, algo que dirigentes, torcida e imprensa nem sempre têm. Quando já se chega na pressão de jogar e resolver fica difícil. Pode até ganhar a Copa do Brasil, mas não seria o mais provável. É dar tempo ao Jair e consolidar uma base para o ano que vem".

 

Pedro Ivo Almeida/UOL
Do Corinthians para a Arábia: Walmir (primeiro da esq. para dir.), Mauro, Carille, Leandro, Mauri e Denis formam a comissão do Al-Wehda para os dois próximos anos

 

Grato após quase dez anos na equipe de Itaquera, o treinador não descartou uma volta ao clube no futuro. No momento, porém, os planos são outros. E mais ambiciosos.

Sonho europeu: propostas de Espanha e França

Na entrevista ao UOL em sua sala no complexo esportivo em que o Al-Wehda treina, em Jeddah, detalhou o plano para realizar o sonho de trabalhar na Europa.

"São dois anos de contrato aqui. Penso muito no hoje, no presente. Quero fazer um grande trabalho aqui e acabar com a imagem de que técnico brasileiro só vem aqui para fazer dinheiro. Com isso, meu nome será ainda mais reconhecido, vai circular. Tenho um sonho de poder estar na Europa, ser um dos primeiros do nosso país a fazer um grande trabalho lá. Me preparo para isso", disse Carille, que revelou sondagens de Sevilla (Espanha) e Bordeaux (França) antes da ida para a Arábia Saudita.

"Mas nem deixei passar da primeira etapa da conversa. Tinha o trabalho no Corinthians e uma série de fatores. Além do fato de nossas licenças [de treinador] não serem reconhecidas na Europa. Não era o momento ali".

Um dos fatores é a língua, algo que virou prioridade no trabalho de aprimoramento profissional do treinador. Com um calendário mais tranquilo e um tempo maior de descanso entre os jogos no continente asiático, Carille aprimora a comunicação para trabalhar em outros centros.

"Aqui eu tenho um tradutor à disposição um tempo inteiro. A língua árabe é peculiar. Mas estou estudando muito inglês aqui. São três aulas via Skype por semana e mais um bom tempo sozinho. Estou tentando aprender e melhorar", contou.

Barrado no shopping

O alfabeto, aliás, tem sido uma das poucas dificuldades de Carille na Arábia. Morando em um condomínio – para estrangeiros – com flexibilidade nas rígidas leis da região, Carille ainda não coleciona tantas histórias.

"A única situação inusitada foi quando tentei entrar de bermuda no shopping. Eles só permitem se você estiver acompanhado da sua esposa. Fora isso tem sido bem tranquilo. É um povo amável, carente, sempre em busca de atenção. Quando começamos a falar, eles se abrem e retribuem o carinho. Meus filhos estão estudando em escolas boas, minha esposa está tranquila. Jeddah é uma cidade um pouco mais aberta. Somos de Meca, mas treinamos aqui justamente por ser um local melhor para viver".

 

Pedro Ivo Almeida/UOL
Ex-capitão sa seleção saudita, Osama Hawsawi (d) é o líder do elenco de Carille (e)

 

O treinador do Al-Wehda, no entanto, faz um alerta a boleiros e outros brasileiros que pensam em se aventurar na Arábia. "Boêmio aqui não aguenta. Não pode beber mesmo, tem que ficar tranquilo. E nada de festa ou balada. No máximo um shopping, um jantar. Ainda bem que eu sou tranquilo, não bebo. Me adaptei bem".

Com moral entre dirigentes e junto ao homem-forte do futebol saudita, o ministro Turki Al-Sheikh, Carille comanda a boa campanha de sua equipe no campeonato nacional. E não está nem perto de reviver a tensão dos tempos de Corinthians.

"É um time novo, subindo da segunda divisão e sendo montado agora. Estamos em quarto lugar e os dirigentes estão satisfeitos. Quero subir, quero estar entre os três que classificam para a Liga dos Campeões da Ásia, mas sabemos que existem times como o Al-Hilal, o Al-Ahli, o Al-Nassr e o Al-Shabab. Esses já treinam juntos há tempos e têm uma base. A ideia é montar um grupo forte e brigar por coisas maiores na próxima temporada", finalizou.

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