Nelson Rodrigues

Crônista esportivo e Anjo Pornográfico

Por Ednilson Valia

O fumante inveterado Nelson Falcão Rodrigues foi o maior tradutor da alma humana na língua portuguesa ao lado de Fernando Pessoa. Um personagem de si mesmo. Nasceu em 23 de agosto de 1912, no Recife e faleceu no dia em que acertou os treze pontos da loteria esportiva em um bolão que os amigos o incluiram, em 21 de dezembro de 1980, no Rio de Janeiro, após uma luta inverossímil contra a morte, onde na prorrogação foi derrotado, posterior a sete paradas cardíacas.

Filho do deputado e jornalista Mário Rodrigues e de Maria Esther Falcão, o maior dramaturgo do Brasil foi o quinto filho do casal (Milton, Roberto, Mário Filho, Stella, Joffre, Maria Clara, Augustinho, Irene, Paulo, Helena, Dorinha, Elsinha e Dulcinha).

Perseguido no Recife, Mário Rodrigues mudou-se com a familia para o Rio de Janeiro, onde depois de algum tempo montou o seu próprio jornal, "A Manhã", posteriormente "A Crítica" onde o teatrológo teve sua primeira experiência jornalística como repórter policial.

Mas a vida pessoal e artistica do autor foi marcada pela tragédia famliar. Seu irmão Roberto foi morto com um tiro dentro da redação do periódico dos "Rodrigues" por uma mulher que teve seu divorcio noticiado na manchete principal. A bala destinava-se ao patriarca familiar.

A morte do irmão influenciou tanto no estilo do dramaturgo que ele chegou a confessar em uma de suas crônicas: "Confesso - o meu teatro não seria como é, e nem eu seria como sou, se eu não tivesse sofrido na carne e na alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de paixão o assassinato de Roberto".

Outros fatos trágicos marcaram a vida do principal crônista brasileiro: a tuberculose, a morte do pai, uma irmã morta aos oito meses, o irmão Paulo que faleceu em um desabamento, as amantes, a miséria, o filho preso e torturado pelo regime militar - cujas as linhas foram defendidas por Nelson- fizeram com que o teatrólogo utilizasse um processo criativo sobre os sentimentos que traduziram uma sociedade mórbida, triste e sem diretrizes.

Observador com incrivel peculariedade, espirituoso, genial, frasista incomparável fez  história na imprensa, no teatro e arriscou-se na TV, participando da famosa e pioneira mesa Redonda  "Grande Resenha Facit".  Devido a espetacular história de Nelson Rodrigues, vamos nos ater a carreira dele com ênfase no futebol.

"Em futebol ,o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakesperiana. Às vezes,num córner bel ou mal batido,há um toque evidentíssimo do sobrenatural"

Nelson era um filósofo da bola, irmão de Mário Filho, este último fundou o primeiro diário especializado em esportes no Brasil, o carioca "Jornal dos Sports" e também foi homenageado cedendo o nome para o estádio do Maracanã, na capital fluminense.

Ele iniciou sua carreira na crônica esportiva em 1940. Mas passou a ter coluna somente sobre o "ludopédio" a partir de 1955, no Jornal dos Sports e a manteve até 1966, a principio teve paralelamente  uma crônica em "O Globo", desde 1962.

Entre 1955 e 1959, Nelson também manteve uma coluna regular no semanário Manchete Esportiva.

Segundo o livro de José Carlos Marques, "O óbvio ululante do futebol, o sobrenatural de Almeida e outros temas", o grande jornalista também escreveu sobre esportes para "Globo Esportivo" e Revista "O Cruzeiro".

Além de duas coletâneas das crônicas esportivas ( "A sombra das chuteiras imortais", em 1993, Companhia das Letras, e "A Pátria em Chuteiras", de 1994, Companhia das Letras) organizadas pelo jornalista Ruy Castro, que também escreveu a biografia de NR (Anjo Pornográfico, Companhia das Letras)

Nelson Rodrigues gostava de sair do enfadonho mundo da crônica esportiva e criou termos  e personagens "imortais", "óbvio ululante" como o "Complexo de vira-latas", o "Sobrenatural de Almeida", "Gênio das pernas tortas", "Maracanã", "O templo sagrado do futebol" e muitos outros.

Detestava unanimidades e o óbvio tão pertinente na crônica de modo geral. Enxergava o futebol com outros "olhos" - "Em futebol ,o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakesperiana. Às vezes,num córner bel ou mal batido,há um toque evidentíssimo do sobrenatural", disse certa vez em uma crônica.

No final da vida, das tribunas do Maracanã,  não conseguia enxergar os entrelances dos jogos e pedia para Armando Nogueira e Otto Lara Resende, amigos de longa data,  descrever o que estava acontecendo nos gramados.

Se auto-definia da seguinte maneira: "" Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico."

Frases de Nelson Rodrigues

- O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da imaturidade.

- Tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhores que traem. O amor bem-sucedido não interessa a ninguém.

- Nós, da imprensa, somos uns criminosos do adjetivo. Com a mais eufórica das irresponsabilidades, chamamos de "ilustre", de "insigne", de "formidável", qualquer borra-botas.

- A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose. Os admiradores corrompem.

- O brasileiro não está preparado para ser "o maior do mundo" em coisa nenhuma. Ser "o maior do mundo" em qualquer coisa, mesmo em cuspe à distância, implica uma grave, pesada e sufocante responsabilidade.

- Há na aeromoça a nostalgia de quem vai morrer cedo. Reparem como vê as coisas com a doçura de um último olhar.

- Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível.

- O homem não nasceu para ser grande. Um mínimo de grandeza já o desumaniza. Por exemplo: um ministro. Não é nada, dirão. Mas o fato de ser ministro já o empalha. É como se ele tivesse algodão por dentro, e não entranhas vivas.

- Assim como há uma rua Voluntários da Pátria, podia haver uma outra que se chamasse, inversamente, rua Traidores da Pátria.

- Está se deteriorando a bondade brasileira. De quinze em quinze minutos, aumenta o desgaste da nossa delicadeza.

- O boteco é ressoante como uma concha marinha. Todas as vozes brasileiras passam por ele.

- A mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, dezessete, dezoito ou vinte anos. Há pulhas, há imbecis, há santos, há gênios de todas as idades.

- Outro dia ouvi um pai dizer, radiante: "Eu vi pílulas anticoncepcionais na bolsa da minha filha de doze anos!". Estava satisfeito, com o olho rútilo. Veja você que paspalhão!

- Em nosso século, o "grande homem" pode ser, ao mesmo tempo, uma boa besta.

- O artista tem que ser gênio para alguns e imbecil para outros. Se puder ser imbecil para todos, melhor ainda.

- Toda mulher bonita leva em si, como uma lesão da alma, o ressentimento. É uma ressentida contra si mesma.

- Acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca.

- Chegou às redações a notícia da minha morte. E os bons colegas trataram de fazer a notícia. Se é verdade o que de mim disseram os necrológios, com a generosa abundância de todos os necrológios, sou de fato um bom sujeito."

A principal crônica
esportiva de Nelson Rodrigues -
O complexo de vira-latas

O texto saiu originalmente na extinta revista "Manchete" em 31/05/1958
 
"Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: - "O Brasil não vai nem se classificar!". E, aqui,eu pergunto: - não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?
 
Eis a verdade, amigos: - desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio* arrancou, de nós, o título. Eu disse "arrancou" como poderia dizer: - "extraiu" de nós o título como se fosse um dente.
 
E, hoje, se negamos o escretede 58, não tenhamos dúvidas: - é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: - o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: - se o Brasil vence na Suécia, e volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício.
 
Mas vejamos: - o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, "não". Mas eis a verdade: - eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: - sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado Flamengo. Pois bem: -não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho.
 
A pura, a santa verdade é a seguinte: - qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: - temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de "complexo de vira-latas". Estou a imaginar o espanto do leitor: - "O que vem a ser isso?". Eu explico.
 
Por "complexo de vira-latas" entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos "os maiores" é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: - e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: - porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.
 
Eu vos digo: - o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: - para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão."
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Fonte: Releituras.com

Livros:

Romances:

- Meu destino é pecar,"O Jornal" - 1944 / "Edições O Cruzeiro" - 1944 (como "Suzana Flag")

- Escravas do amor, "O Jornal" - 1944 / "Edições O Cruzeiro" - 1946 (como "Suzana Flag")

- Minha vida, "O Jornal" - 1946 / "Edições O Cruzeiro" - 1946 (como "Suzana Flag")

- Núpcias de fogo, "O Jornal" - 1948. Inédito em livro. (como "Suzana Flag")

- A mulher que amou demais, "Diário da Noite" - 1949. Inédito em livro. (Como Myrna)

- O homem proibido, "Última Hora" - 1951.  "Editora Nova Fronteira", Rio, 1981 (como Suzana Flag).

- A mentira, "Flan" - 1953. Inédito em livro. (Como Suzana Flag).

- Asfalto selvagem, "Ultima Hora" - 1959-60. J.Ozon Editor, Rio, 1960. Dois volumes. (Como Nelson Rodrigues)

- O casamento, Editora Guanabara, Rio, 1966 (como Nelson Rodrigues).

- Asfalto selvagem - Engraçadinha: seus amores e pecados, "Companhia das Letras", São Paulo.

- Núpcias de fogo, "Companhia das Letras", São Paulo. (como Suzana Flag).
Contos:

- Cem contos escolhidos - A vida como ela é..., J. Ozon Editor, Rio, 1961. Dois volumes.

- Elas gostam de apanhar, "Bloch Editores", Rio, 1974.

- A vida como ela é ? O homem fiel e outros contos, "Companhia das Letras", São Paulo, 1992. Seleção: Ruy Castro.

- A dama do lotação e outros contos e crônicas, "Companhia das Letras", São Paulo.

- A coroa de orquídeas, "Companhia das Letras", São Paulo.
Crônicas:

- Memórias de Nelson Rodrigues, "Correio da Manhã" / "Edições Correio da Manhã", Rio, 1967.

- O óbvio ululante, "O Globo" / "Editora Eldorado", Rio, 1968.

- A cabra vadia, "O Globo" / "Editora Eldorado", Rio, 1970.

- O reacionário, "Correio da Manhã" e "O Globo" / "Editora Record", Rio, 1977.

- O óbvio ululante ? Primeiras confissões, "Companhia das Letras", São Paulo, 1993. Seleção: Ruy Castro.

- O remador de Ben-Hur - Confissões culturais, "Companhia das Letras", São Paulo.

- A cabra vadia - Novas confissões, "Companhia das Letras", São Paulo.

- O reacionário - Memórias e Confissões, "Companhia das Letras", São Paulo.

- A pátria sem chuteiras - Novas crônicas de futebol, "Companhia das Letras", São Paulo.

- A menina sem estrela - Memórias, "Companhia das Letras", São Paulo.

- À sombra das chuteiras imortais - Crônicas de Futebol, "Companhia das Letras", São Paulo.

- A mulher do próximo, "Companhia das Letras", São Paulo.

FRASES:

- Flor de obsessão: as 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues, "Companhia das Letras", São Paulo, 1997, seleção e organização: Ruy Castro.

Teatro:

- Teatro completo, "Editora Nova Fronteira", Rio, 1981-89. Quatro volumes. Organização e prefácios de Sábato Magaldi.

Peças:

- A mulher sem pecado, 1941 - Direção Rodolfo Mayer

- Vestido de noiva, 1943 - Direção: Ziembinski

- Álbum de família, 1946 - Direção: Kleber Santos

- Anjo negro, 1947 - Direção: Ziembinski

- Senhora dos afogados, 1947 - Direção: Bibi Ferreira

- Dorotéia, 1949 - Direção: Ziembinski

- Valsa nº.6, 1951 - Direção: Henriette Morineau

- A falecida, 1953 - Direção: José Maria Monteiro

- Perdoa-me por me traíres, 1957 - Direção: Léo Júsi.

- Viúva, porém honesta, 1957 - Direção: Willy Keller

- Os sete gatinhos, 1958 - Direção: Willy Keller

- Boca de Ouro, 1959 - Direção: José Renato.

- Beijo no asfalto, 1960 - Direção: Fernando Tôrres.

- Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, 1962 - Direção Martim Gonçalves.

- Toda nudez será castigada, 1965 - Direção: Ziembinski

- Anti-Nelson Rodrigues, 1973 - Direção: Paulo César Pereio

- A serpente, 1978 - Direção: Marcos Flaksman

Obs.- as peças de Nelson Rodrigues vêm sendo encenadas por diversas companhias teatrais em todo o Brasil até esta data.

Novelas de TV:

- A morta no espelho, TV Rio, 1963- Sonho de amor, TV Rio, 1964- O desconhecido, TV Rio, 1964

 

FILMES:



- Somos dois, 1950

 

- Meu destino é pecar, 1952

 

- Mulheres e milhões, 1961

 

- Boca de Ouro, 1962

 

- Meu nome é Pelé, 1963

 

- Bonitinha, mas ordinária, 1963

 

- Asfalto selvagem, 1964

 

- A falecida, 1965

 

- O beijo, 1966

 

- Engraçadinha depois dos trinta, 1966

 

- Toda nudez será castigada, 1973

 

- O casamento, 1975

 

- A dama do lotação, 1978

 

- Os sete gatinhos, 1980

 

- O beijo no asfalto, 1980

 

- Bonitinha, mas ordinária, 1980

 

- Álbum de família, 1981

 

- Engraçadinha, 1981

 

- Perdoa-me por me traíres, 1983

 

- Boca de Ouro, 1990.

 

Sobre o Autor:

 

- O teatro de Nelson Rodrigues: uma realidade em agonia, Ronaldo Lima Lins, Editora Francisco Alves/MEC, Rio, 1979.

- O teatro brasileiro moderno, Décio de Almeida Prado, Editora Perspectiva/USP, São Paulo, 1988.

- Nelson Rodrigues - Dramaturgia e Encenações, Sabato Magaldi, Editora Perspectiva/USP, São Paulo, 1987.

- Nelson Rodrigues - Expressionista, Eudinir Fraga, Ed. Atelier, S.Paulo.

- Nelson Rodrigues, meu irmão, Stella Rodrigues, José Olympio Editora, Rio, 1986.

- Nelson Rodrigues: Flor de Obsessão, Carlos Vogt e Berta Waldman, Editora Brasiliense, São Paulo, 1985.

- Amor em segredo - As histórias infiéis que vivi com meu pai, Nelson Rodrigues, Sônia Rodrigues, Editora Agir, Rio de Janeiro, 2005.

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