Reportagem com participação especial de Tim Vickery

Reportagem com participação especial de Tim Vickery

Por Rafael Serra - com participação especial de Tim Vickery

Ao contrário do que muitos especialistas previam no início do Campeonato Inglês, a surpreendente campanha atual do Leicester City se torna mais solida a cada rodada. O clube, que só voltou à primeira divisão na temporada passada, tem conseguido medir forças com equipes teoricamente mais qualificadas e, certamente, mais abonadas. Muitos justificam o sucesso do emergente clube em razão do democrático e inclusivo sistema de divisão da verba referente aos direitos de transmissão do campeonato, um dos mais igualitários do mundo. Se esta é a resposta, difícil saber, o fato é que as zebras não costumam resistir por tanto tempo nos gramados da terra da Rainha. Você sabe qual foi a última vez em que isso aconteceu?

Início do sonho

Há 25 anos, uma revolução tomou conta de um pacato clube do país: o Blackburn Rovers. Fundador da Liga Inglesa, em 1888, o time amargava um longo jejum de títulos nacionais - desde 1914, no Campeonato Inglês, e desde 1928, na FA Cup.

Foi então que Jack Walker, um multimilionário empresário local, decidiu, aos 63 anos de idade, investir boa parte da fortuna que acumulara durante a vida, em seu clube do coração. A atitude, incomum até então, era significativamente mais passional do que os aportes clubísticos que se tornariam costumeiros entre magnatas russos e asiáticos anos mais tarde. E assim, em menos de suas temporadas, tudo mudou em Ewood Park. 

A chegada do novo mandatário, em janeiro de 1991, foi insuficiente para que o clube exibisse mudanças significativas de imediato, já que a temporada se encontrava em sua segunda metade. Sendo assim, os Rovers não conseguiram evitar uma decepcionante 19ª colocação naquela edição da segunda divisão inglesa.

Na temporada seguinte, no entanto, o acesso se tornou apenas uma questão de tempo. Ainda no início da temporada, o clube contratou o jovem técnico Kenny Dalglish, que com apenas seis anos na função já havia conquistado nada menos que 11 títulos, incluindo três Campeonatos Ingleses. Os comandados de King Kenny acumularam bons resultados por quase toda a temporada, até que uma inesperada sequência de seis derrotas consecutivas colocou em risco o sonho de disputar a primeira edição do reformulado Campeonato Inglês, a Premier League.

Após sobreviver às semifinais dos playoffs de acesso, o Blackburn derrotou o Leicester (esse mesmo) na final, e conseguiu o direito de disputar a primeira divisão inglesa, o que não acontecia desde o ano de 1966.

Elenco que conquistou o acesso à Premier League. Foto: Reprodução

Pioneiros na Premier League

Agora organizada pelos clubes, a Premier League sequer havia iniciado e já despontava como uma das mais organizadas, ricas e competitivas ligas da Europa, muito por conta do colossal acordo de direitos televisivos firmado entre os clubes e a BSkyB, emissora formada após a fusão entre a Sky Television e a British Satellite Broadcasting.

Logo de cara, Jack Walker quebrou o recorde de transferência mais cara do futebol inglês ao contratar o centroavante Alan Shearer, do Southampton, por 3,3 milhões de libras esterlinas. Dois anos mais tarde, o magnata superaria a marca anterior para contratar o atacante Chris Sutton, por 5 milhões de libras esterlinas.

Quando Sutton chegou, pouco antes do início da temporada de 1994/1995, os Rovers já eram bastante respeitados na elite inglesa - muito por conta do quarto lugar obtido na temporada inaugural da Premier League, e de um expressivo vice-campeonato em 1993/1994. Além dos renomados atacantes, os Riversiders contavam com as estrelas Graeme Le Saux, Stuart Ripley, Kevin Gallacher, David Batty e Tim Flowers, todos eles com passagens por suas respectivas seleções nacionais.

Um primeiro turno impecável, com 15 vitórias, quatro empates e duas derrotas enfim credenciava o clube ao tão sonhado título nacional. Mas havia uma pedra, ou melhor, um buraco no caminho dos meninos de Lancashire. O Manchester United, então bicampeão inglês após décadas de jejum, não se mostrava nem um pouco disposto a aceitar a supremacia megalomaníaca do outrora pequeno clube do interior - vale ressaltar que Blackburn fica apenas 14km ao norte da região metropolitana de Manchester.

No entanto, nem as derrotas sofridas para os Red Devils nos dois turnos pareciam ser suficientes para que os Rovers perdessem o título. Para piorar a situação do Manchester United, o clube havia perdido seu principal jogador, o francês Eric Cantona, suspenso por conta da histórica agressão contra um torcedor em uma partida contra o Crystal Palace.

Famosa voadora executada por Cantona. Foto: Reprodução

Consultado sobre a questão, o correspondente da BBC, Tim Vickery, acredita que este incidente colaborou para que os azuis e brancos conquistassem o título. “É altamente provável (que o Manchester teria sido campeão). Cantona estava no auge, Cantona estava muito feliz, pois tinha finalmente encontrado o seu ambiente. Mesmo tendo sido peça fundamental no título do limitado time do Leeds, em 1992, o futebol do francês não foi devidamente apreciado pelo técnico da equipe. Já o Ferguson soube trabalhar muito bem o ego desse jogador”.

Tim Vickery. Foto: Reprodução

“Quando o Cantona foi contratado pelo United, a maioria dos jornalistas achavam que não iria dar certo. Eu pensava o contrário, porque ele era um homem que precisava de um grande palco, e Old Trafford foi justamente este grande palco. Por isso penso que se ele não tivesse atacado aquele torcedor, as possibilidades do United vencer o título teriam sido muito maiores”, completa.

Apesar de manter uma boa vantagem na classificação, duas derrotas do Blackburn já na reta final fizeram com que o rival mancuniano chegasse à última rodada com chances de título. Com apenas dois pontos à frente, os Rovers não poderiam se dar ao luxo de tropeçar na última rodada contra o Liverpool. Porém, foi exatamente o que aconteceu.

Ainda que beneficiasse um de seus maiores rivais com a vitória, o Liverpool venceu o Blackburn, de virada, no último minuto de jogo, em uma belíssima cobrança de falta executada por Jamie Redknapp. Com o resultado, os Reds garantiam a classificação para a Copa da Uefa do ano seguinte, enquanto os Rovers teriam que aguardar o final da partida entre West Ham e Manchester United para soltar o grito de campeão, entalado na garganta por quase um século.

A apreensão nas arquibancadas e no gramado, no entanto, durou poucos segundos. A notícia de que a partida do rival havia terminado empatada se espalhou rapidamente por Anfield. Enquanto comemorava a conquista com um sorriso pueril, o consagrado ídolo local Kenny Dalglish era aplaudido e saudado pelas duas torcidas. Como muitos esperavam, o aparentemente “durão” Jack Walker não se conteve e desceu ao gramado para comprovar que seu sonho de infância havia, enfim, se tornado realidade.

Shearer e Walker, os principais nomes da conquista. Foto: UOL

Declínio

Ao contrário do que a história faz parecer, o dinheiro investido pelo mecenas não fez com que o Blackburn “comprasse” o título. Apesar dos recordes estabelecidos nas aquisições de Shearer e Sutton, o valor gasto pelo clube para contratar seus onze titulares (14,7 milhões de libras esterlinas), era muito menor do que o montante investido pelo Manchester United (19,33 milhões). O também emergente Newcastle United pagou mais pelo zagueiro Darren Peackock do que os Rovers desembolsaram por seus quatro jogadores de defesa. O meio-campo Carlton Palmer custou mais para o Leeds United do que todo o meio-campo titular do Blackburn. Tais dados comprovam que o investimento dos Riversiders se concentrava em poucos jogadores, em especial os atacantes.

O sucesso de 1995, no entanto, não se repetiu nas temporadas seguintes, quando o clube acostumou-se a flertar com o rebaixamento e a trocar constantemente de técnicos, à moda brasileira. A temida queda aconteceu na temporada 1998/1999. Jack Walker, o mais ilustre torcedor dos Rovers, faleceu em agosto de 2000, aos 71 anos.

Após ter retornado e permanecido na Premier League por mais de uma década, o Blackburn ocupa atualmente a 16ª colocação na Football League Championship (segunda divisão inglesa). Apesar de longínqua, a glória fugaz daquele time de 1995 ainda é o único exemplo de êxito de uma equipe de menor expressão na Inglaterra desde a criação da desmesurada e asséptica Premier League, que em 23 edições só foi vencida por cinco clubes diferentes.

Fanatismo da torcida

"A torcida do Blackburn é muito fanática (como todas na Inglaterra são), mas lá, pra você ter noção, o estádio tinha uma média de público de 25 mil torcedores, sendo que a cidade tem aproximadamente 200 mil habitantes. Quando tem jogo todo mundo para pra assistir, a torcida costuma comprar carnês de ingressos para toda a temporada. Além disso, tudo é muito organizado", afirma o lateral-direito Bruno Ribeiro, que atuou pelos Rovers entre 2011 e 2013.

Bruno Ribeiro em sua passagem pelo Blackburn. Foto: Divulgação/Blackburn

"Eles são meio loucos. O clássico local (contra o Burnley) é uma loucura. Quando as torcidas saem para ir até a casa do adversário costuma dar algumas confusões ao redor do estádio, até porque o trajeto entre as cidades dura dez, quinze minutos", complementa.

Legado de 1995

"A torcida tem um orgulho muito grande deste título, falam disso de boca cheia. Por isso, eles (os funcionários mais antigos do clube) vivem contando histórias sobre a conquista", diz o brasileiro. 

"Essas pessoas que foram campeãs pelo clube ficaram marcadas, tanto é que frequentemente retornam para trabalhar ou receber homenagens. Eu mesmo tive a oportunidade de trabalhar com o Colin, que foi meu auxiliar-técnico, e ser treinado pelo Herring Berg, que também jogou no ano do título", afirma Bruno, o único jogador brasileiro que já atuou pelo clube de Lancashire.

Quando questionado sobre qual seria a estrela principal na cidade, Bruno não titubeia. "Sem dúvida a estrela principal foi o Alan Shearer, que como se costuma dizer, levou o título nas costas. Ele é como um "Deus" para o pessoal de lá".

Blackburn x Leicester

Embora pareçam semelhantes, Tim Vickery acredita que há mais diferenças do que semelhanças entre o consagrado Blackburn e o atual time do Leicester. “A campanha do Blackburn, por ter sido ainda no início da Premier League, foi antes da chegada de toneladas de dinheiro e de muitos jogadores estrangeiros. Naquela temporada quase todos os jogadores eram britânicos, com poucas exceções. Além disso, o Blackburn teve um diferencial financeiro expressivo, tanto que conseguiu um técnico de nome e um elenco de nome. O Shearer, por exemplo, era talvez o jogador mais glamuroso do futebol inglês naquele período. Sendo assim, não vejo como compará-lo com o atual time do Leicester, que é uma zebra total”.

Por fim, Vickery acredita em uma possível perda de fôlego da equipe sensação da atual temporada inglesa. “Acredito em uma perda de fôlego daqui para a frente, por dois motivos: Um deles é o fato de que o Leicester deixou de ser zebra. Antes, os jogadores entravam em campo sem nada para perder, agora já não é mais assim. Mas também, especialmente Arsenal e Manchester City têm elencos com mais profundidade e há outro fator fundamental, no meu modo de ver. Na primeira metade da temporada tivemos datas Fifa em setembro, outubro e novembro. Na segunda metade, só tem no final de março. Ou seja, para o Manchester City, que está recuperando agora o Sergio Aguero, e para o Arsenal, que está recuperando agora o Alexis Sanchez, isso é absolutamente fundamental. Por essa falta relativa de jogos de seleções nacionais, de grandes viagens envolvendo alguns dos jogadores chaves do elenco, acho que City e Arsenal agora são os grandes favoritos”.

Que Fim Levou?

Foto: Reprodução/Twitter/Alan Shearer

Em pé, da esquerda para a direita: Tony Parkes, Stuart Ripley, Jason Wilcox, Colin Hendry, Bobby Mimms, Paul Warhurst, Tony Gale, Ian Pearce e Mike Newell. Sentados, da esquerda para a direita: Kevin Gallacher, Jeff Kenna, Tim Flowers, Alan Shearer, Tim Sherwood, Kenny Dalglish, Chris Sutton, Mark Atkins, Graeme Le Saux e Alan Wright.

 

Tony Parkes - Trabalha atualmente como olheiro para o Blackburn Rovers.

Stuart Ripley - Atualmente trabalha como advogado.

Jason Wilcox - Administra a equipe Sub-18 do Manchester City.

Colin Hendry - Teve passagens sem brilho com técnico do Blackpool e do Clyde, além de ter sido auxiliar-técnico do Blackburn. Chegou a enfrentar a seleção brasileira na estreia da Copa de 1998, pela Escócia.

Bobby Mimms - Treinador de goleiros no West Ham United.

Paul Warhurst - Aposentou-se do futebol em 2007, após passar por inúmeros clubes.

Tony Gale - Trabalha como comentarista da Sky Sports e é colunista do The Sun.

Ian Pearce - Chegou a trabalhar como assistente técnico do ex-companheiro Chris Sutton no Lincoln City.

Mike Newell - Atualmente desempregado, teve algumas passagens como treinador.

Kevin Gallacher - Atua como comentarista. Escreveu um aclamado livro sobre a decadência do futebol escocês.

Jeff Kenna - Treina categorias de base nos Estados Unidos.

Tim Flowers - Foi recentemente treinador de goleiros no Nottingham Forest.

Alan Shearer - É um dos principais comentaristas da BBC.

Tim Sherwood - Treina o Aston Villa.

Kenny Dalglish - Não obteve mais sucesso em seus trabalhos como treinador. Desde 2013, ocupa o cargo de diretor não-executivo do Liverpool, clube onde é um dos maiores ídolos.

Chris Sutton - Aposentou-se do futebol em 2007, quando jogava pelo Aston Villa. Teve uma passagem breve como técnico do Lincoln City, em 2010.

Mark Atkins - Entre 2008 e 2014 treinou o Matlock Town, equipe da sétima divisão inglesa.

Graeme Le Saux - Trabalha como comentarista do Campeonato Inglês nos Estados Unidos.

Alan Wright - Seu último trabalho como técnico foi em 2013, quando treinou o Southport, clube da quinta divisão inglesa.

Henning Berg - Treinou o Blackburn em 2012, tornando-se o primeiro estrangeiro a comandar o clube. Está sem emprego após ter sido demitido do Legia Varsóvia, em outubro de 2015.

Fontes do "Que Fim Levou?", Daily Mail, Wikipedia e Bruno Ribeiro.

 

Foto principal: Getty/Retirada do UOL

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