Datas têm significado. Pelo menos para quem, como eu, é saudosista. Algumas marcam bastante. 9 de outubro é uma delas: se estivesse vivo, Cezimar Oliveira Luz, meu tio, completaria 74 anos.
Nordestino do interior do Rio Grande do Norte, são-paulino, seco, na dele, o "tenente Luz" sempre me tratou como se fosse um seu filho, o quarto. Nos anos em que morei em sua casa, na ZL, já que meus pais moravam (e voltaram a morar em Caraguá) nunca fez diferença entre eu e seus três filhos _meus primos_, todos também corinthianos.
Das cem crônicas que publiquei no meu livro Paixão Corinthiana, há muitas que dizem respeito à minha vida, à minha família. Mas duas, especialmente, sempre me emocionam. A que fiz para o meu tio, A dor de ser São Paulo por um dia, e uma outra, Tiete vira ídolo no espelho da vida, que escrevi para o meu irmão, mas não vem ao caso agora.
Não é lugar de discutir fé nem religião. Mas uma das maiores alegrias que tive, depois que virei adepto da doutrina espírtia, foi a convicção, certeza, de que tio Cezimar faz parte da minha família espiritual ad eternum.
A dor de ser São Paulo por um dia (publicado em 14 de julho de 2007)
Todo brasileiro sonha em presenciar um jogo da nossa seleção contra a Argentina. Qualquer corinthiano sofre, torce e se envolve em um clássico contra o São Paulo. Agora, se além de torcedor, o sujeito viver profissionalmente do futebol e fazer do esporte, além de sua vida, seu ganha-pão, esses dois clássicos começam a ser vividos muito antes de o apito inicial.
É como uma gestação: a vida começa antes, quando chega a notícia. Duas semanas antes de Ronaldo, com três gols de pênalti, massacrar os hermanos em um Mineirão lotado, ele já estava ansioso. Seria sua primeira cobertura de um Brasil x Argentina, a primeira vez na capital mineira, com direito a uma escala em Teresópolis para acompanhar os treinamentos dos comandados de Parreira na pomposa Granja Comary.
Sexta-feira, 28 de junho de 2004. De manhã bem cedo, ele, tirando de letra o seu enraizado medo de avião, embarca em Congonhas. Na época, caos da aviação era apenas sobreviver aos cerca de 50 minutos da ponte aérea sem poder fumar. Inteiro, a primeira atitude ao pisar o solo do Santos Dumont foi ligar o celular enquanto se dirigia para alugar um carro para seguir para Teresópolis. O ligar do aparelho foi simultâneo à chamada. De outro lado da linha,a voz baixa e falha da irmã anuncia: "O tio Cezimar morreu".
A alegria foi abortada. O sonho profissional e pessoal, idem. O que fazer? Voltar para São Paulo? Avisar a chefia que não daria para fazer o trabalho? Incerto se tomou a melhor decisão, pegou o carro alugado e, revezando o braço direito entre o enxugar das lágrimas e a troca de marchas, pegou a sinuosa estrada para Teresópolis.
O trabalho, árduo, foi cumprido de forma mecânica. Do computador para o treino; do treinamento, para o laptop. Domingo, 30 de maio, enquanto o coletivo rola, ele observa o treino com radinho sintonizado em uma estação carioca que transmite um clássico pelo Brasileiro: Vasco x Botafogo ou Vasco x Flamengo, não tem certeza. Seu objetivo é apenas acompanhar as interrupções do plantão esportivo para informar o andamento do placar no Morumbi, onde o técnico Tite estreia no seu Timão contra o Tricolor.
Cezimar não era mais um tio. Era o tio, com quem morou dois anos, amou por toda a vida e sempre considerou seu segundo pai. Por isso, apesar de sua mais convicta paixão pelo alvinegro, resolveu que iria torcer contra seu coração em homenagem à memória do parente são-paulino.
"No Morumbi, o São Paulo sai na frente", anuncia o repórter, para sua vibração seca, porém sincera. Pouco tempo depois, a mesma voz chiada informa que Renato deixou tudo igual. Contra sua natureza, nenhum sinal de alegria é notado. Fim de jogo no rádio; de treino, na Granja, e dá- lhe correr para mandar a tempo as matérias para o editor.
O Brasil não tem mais Ronaldo. Cezimar continua fazendo uma falta danada. Como ele queria que o tio estivesse aqui hoje para gritar um “chupa” após o clássico, ou ter que escutar “freguês, pode pagar a pizza”.
Tio Cezimar, Vitor Guedes, primo Sério e minha irmã Marília Ruiz
Vai, Corinthians
Se meu tio, são-paulino, faria 74 anos nesta quinta, no dia 10 de outubro, nesta sexta, meu pai, Viriato Olímpio Guedes, a quem devo muito, inclusive o fato de ser corinthiano, maloqueiro e sofredor, graças a Deus, faz 64 anos. Dediquei vários textos ao velho, e reproduzirei aqui um deles, Amor imposto de pai para filho, que também faz parte do livro Paixão Corinthiana e que foi publicado, originalmente, na coluna Caneladas do Vitão, no jornal Agora, em 11 de agosto de 2007
Amor imposto de pai para filho
Natural de Trás-os-Montes, com quatro anos incompletos Nenê aportou em Santos. Mais do que naturalizado, ele é um brasileiro de coração, 100% Vila Maria. Cresceu nadando no Tietê, flertando nos bares da Guilherme Cotching, brincando na praça Santo Eduardo, acompanhando a mãe aos domingos na igreja da Candelária e o pai nos comícios de Jânio Quadros.
Apesar de os irmãos e pais, adeptos do Porto, adotarem a Lusa de cara, Nenê virou corinthiano antes mesmo de demonstrar simpatia pelo Benfica. A influência dos amigos não se fez presente apenas na sua opção clubística, influenciou claramente também seu modo de vida. Driblou o sonho materno, fugiu do seminário e viveu os anos dourados da várzea paulistana.
O meia-esquerda, que começou a jogar no meio dos marmanjos aos 14, o que lhe valeu o apelido de Nenê, marcou seus golzinhos de falta e se envolveu em diversas brigas nos três times mais concorridos do bairro: Benfiquinha, Xavantes e Vila Maria. A potência na canhota lhe valeu alguns convites, e Nenê chegou a bater sua bola no juvenil da Lusa e do seu Timão.
Mas o futebol era uma loteria. Apostou no estudo, no trabalho e, já formado em administração, casou com uma espanhola- tricolor. Seu maior sonho era ser pai. Olívia nasceu logo, mas um sopro no coração a levou ainda um anjinho de três meses.
Nenê não queria saber mais de nada: nem o Corinthians fazia mais sentido. Foi um ano e meio de sofrimento até o surgimento de Alemão, que com uma camisa do Timão pregada na porta da maternidade, veio ao mundo em janeiro de 1977, 8 meses e 17 dias antes de Basílio fazer o gol que livrou o time do povo de 23 anos de agonia, o primeiro título comemorado por Nenê.
O pai passou as obrigações mais secundárias (educação, alfabetização, etc) para a mulher, mas fez questão de ensinar ao garoto as primeiras palavras: “pa-pai” e “Ti-mão”. E foi às lágrimas ao constatar que o garoto só chutava a bola de esquerda.
Alemão, apelido dado por Nenê, puxou os traços claros e o estilo maloqueiro da mãe. Nenê é moreno, de gostos refinados, galanteador (‘Linda, por favor um chopinho e um sorriso‘), seletivo, fã de caldo verde e conservador (embora se considere de centro como todo direitista).
Alemão se recusa a tomar sopa enquanto tiver dentes, é o que o senso comum chama de esquerdista radical e não herdou 10% da classe paterna. Mas o filho, para orgulho indisfarçável do pai, defendeu o Corinthians, com a mesma dez nas costas, nas categorias de base.
Futebol é muito mais que um jogo, um clube não é apenas algo para se torcer. Ser Corinthians é a ligação mais pura, remota, eterna e indestrutível de pai e filho, é a imposição genética que faz dois seres tão opostos sofrerem, amarem e vibrarem juntos.
Quem é pai sabe que o filho está eternamente dentro do coração. É como o time de coração: provoca muita dor, choro, sofrimento, mas basta uma alegria para tudo ser esquecido. É como o amor paterno.
Marcelinho (afilhado), Vitor Guedes, Basa (filho) e Viriato (pai): dia de curtir o Corinthians em ITaquera (Arquivo Pessoal)
Com meu pai Viriato, na ZL, no aniversário de um ano do Basílio, em dezembro de 2009
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