Se a vida é dinâmica, o futebol – sobretudo o brasileiro –, sofre em função da hemodinâmica, pois é notórios que há problemas de circulação sanguínea, causando falta de oxigenação no cérebro de alguns dirigentes, árbitros, técnicos e jogadores.
A vida está em constante mudança. Já o futebol nem tanto. Mas se dentro do campo a situação anda meio invariável, pelo menos no entorno do campo tem havido mudanças. A construção de estádios – que agora são chamados de arenas –, com ares de primeiro mundo, e administração de quinto, é prova disso. Mas junto dessa nova concepção de arena está desaparecendo um espaço tradicional: o alambrado.
Sim, sei que o alambrado começou a ser abolido por questão de segurança, mas... O alambrado de um campo de futebol é o lugar mais democrático que existe. É ali – por entre aqueles arames em forma de losango – que amor, ódio, paixão e desilusão se misturam a todo instante. O alambrado é a numerada do povão.
Foi no alambrado do estádio do Pacaembu, em São Paulo, que, numa noite de quarta-feira, aquele torcedor com a camisa da Gaviões da Fiel via o Timão perder por 1 a 0 para o Coritiba. O Corinthians vivia aquela fase do início da década de 70 em que há muito tempo não sabia o que era um título. Por isso, ao ver o centroavante Flávio Minuano perder mais um gol, o torcedor, enraivecido, agarrou-se ao alambrado, na direção do banco de reservas corintiano, e gritou:
— Pelamor de Deus, compra um centroavante, que “nóis paga”!
Ainda nos dias de hoje o alambrado do campo do Juventus, na Rua Javari, na Mooca, é lugar cativo de vários torcedores. Foi ali que durante anos o Cozzi, torcedor de voz rouca e metálica, sempre em elevado estado etílico, vociferou no ouvido de bandeirinhas e técnicos.
Houve um jogo em que o Cozzi cismou com o técnico juventino, o lendário Milton Buzetto, famoso por sua fama de retranqueiro. No banco de reservas estava um jogador chamado Tanesi. E o Cozzi não se conformava. Como é que o Milton Buzetto não punha em campo o “Tanésio”?
— Mirto, bota o Tanésio! Mirto, bota o Tanésio!
Foi assim durante todo o primeiro tempo e o intervalo. No segundo tempo a coisa não mudou. Ao contrário, piorou.
— Mirto burro! Burro! Bota o Tanésio! Mirto Burro! Bota o Tanésio!
Talvez para se ver livre daquela voz esganiçada, o técnico resolveu mandar o Tanesi a campo. Aí o Cozzi delirou.
— Aí, Tanésio! Tanésio! Tanésio!
O centroavante entrou e logo na primeira jogada, recebeu a bola limpinha dentro da área. Chutou forte. A bola subiu, saiu do campo e foi parar lá na creche de Montessori. E foi aí que do alambrado da Rua Javari passou-se a ouvir uma nova cantilena.
— Mirto burro! Tira o Tanésio!
Foi também no alambrado da Rua Javari que o padre Martini, lendário comandante do Oratório Festivo de Dom Bosco, protagonizou uma das mais memoráveis cenas.
Padre Martini nunca se fez de rogado em trazer o Todo-Poderoso a campo. Num jogo festivo, em pleno campo da Rua Javari, seu time sustentava um zero a zero, sofrendo verdadeiro bombardeio do adversário. O gol parecia ser uma questão de tempo. Só não aconteceria por milagre. E de milagre o padre entendia.
— A mão de Deus tá no nosso gol – berrava, com seu sotaque macarrônico.
E tome bola na trave.
— Orra, meu; eu não disse? A mão de Deus tá no nosso gol!
Último minuto de jogo. Falta contra o time do padre na entrada da grande área. Todos olharam para ele. Mas padre Martini estava confiante.
— Orra, meu! Deus botou a mão na frente do nosso gol!
O juiz apitou. O 10 do time adversário, canhoto, bateu colocado, com efeito. A bola entrou o ângulo. Um a zero. Fim do jogo.
Procurando uma explicação, a galera olhou para o padre Martini. Mas ele não afinou. Depois de algum tempo, suspirou fundo, e concluiu:
— Orra, meu! E não é que Deus tirou a mão?!
Magalhães Jr. — O Maga
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