Era recorrente no cinema americano, principalmente nas décadas de 70 e 80, a figura do soldado que beirava a insanidade ou o veterano de guerra atormentado pelas lembranças do front

Era recorrente no cinema americano, principalmente nas décadas de 70 e 80, a figura do soldado que beirava a insanidade ou o veterano de guerra atormentado pelas lembranças do front

Era recorrente no cinema americano, principalmente nas décadas de 70 e 80, a figura do soldado que beirava a insanidade ou o veterano de guerra atormentado pelas lembranças do front. Hologramas que cobriam com dramaticidade e uma pitada de exagero o dia-dia do combatente. A guerra do Vietnã foi pródiga nesse sentido. “Nascido para matar”, “O franco atirador”, “Apocalipse Now” e “Hamburger Hill” são alguns célebres exemplos de arte em película tratando da guerra e os efeitos devastadores sobre a psique de seus personagens. Soldados desequilibrados, despudorados, tropas de alucinados por LSD, anfetamina e heroína, criaturas despersonalizadas que tinham perdido para sempre o elo com os seres pregressos que eram; após o amargo regresso, os jovens de ontem esperavam o status de “heróis” de guerra, condecorados ou não, mas a realidade se mostrou outra, se sentiam inaptos à uma vida banal e estavam longe de serem aclamados nas ruas como emblemas da comunidade que eram parte. Com o tempo, tornavam-se figuras amargas, asfixiadas pelas suas próprias idiossincrasias, afetadas por frequentes surtos persecutórios, incapazes de se relacionarem de modo saudável e mergulhados no vicio pelos entorpecentes; o famoso tio em um cômodo escondido que a família faz questão de esquecer, na melhor das hipóteses, sustenta por complacência parental.

Essa lembrança da sétima arte serve como preâmbulo para um personagem muito atual e caricatural, Dunga. Admito que padeço de uma simpatia estranha pela falta de destreza social na figura do gaúcho turrão, rústico. Dunga parece um eterno Rambo ressentido, um servidor da pátria amargurado pelas “frescuras e ingratidão” de seu povo. Em um mundo repleto de figuras convenientemente polidas, treinadas para ser o que não são, não acho de todo ruim a deselegância medieval do truculento treinador, os pecados de Dunga parecem sinceros. É óbvio que a graça na falta de graça não abrange o convívio direto, seria pavoroso dividir o mesmo teto com uma pessoa assim ou mesmo ser repórter da horda dos que não fazem da pergunta um trampolim. Mas enquanto figura pública, me divirto com pessoas que se mantem leais a sua essência, obviamente quando essa essência não extrapola barreiras morais e éticas. Gostava quando Mano Menezes, à frente da seleção e sob os holofotes de uma entrevista coletiva, mantinha sua oratória professoral, cadenciada, educada; ele sempre foi assim e não tentou adotar uma nova roupagem, mais popular e acessível ao grande público que não se enxergava na figura sofisticada do treinador.

Enquanto treinador, o trabalho anterior de Dunga na seleção, revelou boas qualidades e conceituais defeitos da classe no país. Dunga tirava o máximo de seus atletas, eles pareciam jogar em seu limiar, havia uma solidez defensiva e um time sempre disposto e capacitado a correr mais do que o adversário. A seleção brasileira sob sua batuta era, basicamente, um time de contra-ataque. As fragilidades também são notórias, Dunga levou suplentes nada mais do que medíocres à África do Sul, tanto é que no fatídico jogo da eliminação ele não utilizou todas as substituições que lhe eram de direito; o “batalhão” de Dunga também não dispunha de soluções táticas alternativas quando a proposta inicial recebia uma vacina à altura. Times como a Holanda, que forçavam o Brasil a ter iniciativa de jogo, impunham uma dificuldade criativa enorme ao jogo brasileiro. Mas em um balanço geral, classificaria seu trabalho como satisfatório. O incômodo que o Dunga treinador gera em mim, extrapola quesitos táticos ou escolhas fortuitas, e muito menos se escora nos seus erros de português que virou assunto nacional, mas sim o que Dunga materializa. O comandante da seleção encarna a leva de treinadores que carrega a natureza moral (não enquanto ideal absoluto, mas nos estereótipos) como mote, fazendo do jogo uma costela de um “bem” maior. Bem que em dados momentos seria a “honra nacionalista”, em outros um jeito “machão” de ser, é o famoso time de guerreiros que já tem por definição sua própria sentença, é matar ou morrer. O futebol brasileiro está embrenhado em um campo cheio de aspirantes há heróis, Dunga é um valente representante desse complexo de homens que idolatram a guerra por nunca terem vivenciado uma de fato, pois na mesma não há glamour, escolhas ou valentias por palavras esbaforidas no redemoinho de uma CBF. Há fuzis, sangue, traumas que estragam vidas de maneira irreversível, soldados, bravos ou trêmulos não importa, que em seus sonhos mais prazerosos se refastelam em uma inocente partida de futebol. O Brasil consumado na figura do Dunga, perdeu esse prazer pelo jogo jogado, a ludicidade da pelada dos anciãos (onde há um acordo tácito, “toquemos senhores”, sem correria desvairada), passamos a iconizar a tragédia bélica e ser o bobinho no limbo –não sou o que já fui, não admito querer ser o que os bons hoje são-, o futebol brasileiro está morrendo pela pior das moléstias, a ausência de alma. Sinal dos tempos!

Foto: UOL

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